Mais um inicio de noite saboroso no Adamastor, passado comigo mesma e com os sons improvisados na curva de um sorriso, a respirar um bocado de Lisboa e do rio para limpar tudo cá dentro.
O sol hoje fez-nos uma visita, num jeito meio trocista, depois dos dias cinzentos que dançaram esta semana toda. Olho o por do sol e penso como é que ele será do outro lado. Pois é. 18 anos a ver o sol todos os dias e nunca lhe vi as costas. Será igual? Será a mesma luz? Será mais feio? Porque é que raramente nos interrogamos sobre aquilo que não conseguimos ver? O campo da imaginação é muito menos nítido… mas aposto que é muito mais bonito do que o físico e visível.
Eu por exemplo, daqui vejo o Cristo Rei de braços abertos para mim, denunciando uma esperança com os seus olhos postos em nós. Já quem vive do outro lado do rio, só lhe vê o rabo!
Às vezes gostava de ver o que não consigo.
Mas vou deixar isso ao critério da minha imaginação desfocada!
29/10/2006
26/10/2006
Próxima paragem: Desconhecida
E porque há quem não tenha carta de condução, ou até quem prefira o suave aroma a axila de refogado e a perícia dos carteiristas ao conforto do seu carro, foram feitos, em honra dessa estirpe massiva da sociedade, os autocarros. E é precisamente sobre esse magnífico meio de transporte e todo o habitat que se lhe associa que venho falar. Metro?! Não, isso é coisa de gente fina! Táxi?! Isso então é só mesmo para quem pode! Eu é mais autocarros.
Venho aqui desmistificar, para todos os leitores abastados, a ideia lendária de que andar de autocarro é um hábito sujo, degradante e sem qualquer proveito à excepção do contacto corporal que eu tanto gosto, sim?!
Tudo isso são mentiras! Tudo isso são calúnias! Tudo isso são blasfémias! Resolvi desprender-me de todos os meus preconceitos e estereótipos e descobri que… andar de autocarro pode ser um acto extremamente cultural! Diria erudito mesmo! Senão vejamos:
Num dia fotocopiado de muitos outros, sem nada de novo até à altura a não ser a mensagem de informação ao cliente da Yorn, que eu tanto gosto de receber, apanho o meu 27 e é aí que tudo muda! É a Boa Nova Rodoviária! De rua em praceta, começam a entrar os deputados da assembleia ambulante da 3ª idade. Têm rugas, cabelos brancos ou no hair at all, uns com olhos queridos por trás das lentes garrafais, outros com expressões ameaçadoras e zangadas com a vida ou com a morte que ainda está para chegar (ainda não consegui perceber muito bem), capazes de comer o mundo com as suas próteses dentárias reluzentes.
O clima começa a entrar em ebulição, pego nos meus Malteesers, acomodo-me na minha cadeira da primeira fila, autografada por Anas que amam Joões, and Show Time!
O motorista vai colhendo os passageiros, e os velhinhos, à medida que entram vão-se cumprimentando uns aos outros – os que se conhecem, os que não se conhecem, os que fingem que se conhecem e fazem autênticos malabarismos e ginásticas lexicais e sintácticas para evitar ter de se dirigir à pessoa pelo nome – enfim! Todos são amigos, e todos sabem de todos! Parecem ceitas organizadas, circulação interna de informação, base de dados completa! Às vezes chego mesmo a pensar que até devem existir Clubes de Associados da Carris, com encontros semanais e torneios de Canastra! Penso que alguns devem ser também amigos de Grupos Turísticos da viagem diária com partida em Santa Apolónia Às 17.00h. São reformados, têm tempo livre e solidão, um passe Lisboa Viva, e aproveitam (e muito bem) para conhecer a cidade. Existe melhor forma de conhecer Lisboa que no conforto de um Volvo com motorista, com ambientador humano de catinga do bosque e ar condicionado das respirações engripadas dos passageiros? Aposto que não!
Essas jornadas turísticas explicariam o facto de todos os velhinhos saberem os nomes de todas as ruas num raio de 15 Km e respectivos códigos postais, que nem um GPS orgânico topo de gama! Já eu, nem sei onde fica a Almirante Reis.
Acho especial piada às conversas corriqueiras das senhoras. Cumprimentam-se formalmente (é raro o contacto físico), e em vez do comum “Está boazinha?”, NÃO! Sai antes um benevolente, piedoso e mártir “Está melhorzinha?”… Mas é genérico! Podem até conhecer-se apenas da carreira anterior, podem nem saber nada de nada da pessoa, mas partem sempre do pressuposto que por detrás daquela simpatia toda estará algures escondida uma qualquer patologia maldosa, esfregando as mãos de crueldade, por mais que a pessoa venda saúde!
Mas também, frequentemente respondem à pergunta confirmando todas as dúvidas, disparando um rol imenso de doenças e dores, quais sofredoras pagando pelos seus pecados de uma vida! E pronto, desatam ali numa desgarrada de maleitas, competindo pelo lugar de moribundo como se de um leilão se tratasse. É o “quem dá mais” da Epidemiologia!
Seguidamente, perguntam pela família, o que inclui gatos, periquitos e todo o tipo de animais de companhia. Fazem outra competição, mas agora de fotografias dos filhos, netos, bisnetos e toda a linhagem descendente, que recheiam as suas carteiras de pele rechonchudas. Basta analisar-lhes o olhar babado e reconfortado de quem tem a certeza que trouxe algo de bom ao mundo, e isso basta-lhes a eles, e é razão mais que suficiente para viverem os últimos anos da sua vida, por mais difíceis que sejam. Contam histórias, o casamento dos netos, as traquinices de outros, e vivem essas memórias como se lhes trouxessem um bocadinho de juventude emprestada. Confiam as histórias e as vidas a pessoas que conhecem ali do banco da frente do autocarro, como se fossem amigos de longa data, quiçá da sua infância muito longínqua.
Trocam umas quantas ideias e uns quantos comentários sobre os programas matinais da televisão, sobre os dinheiros que gastam a tentar ligar para o Goucha no Você na TV. E acusa-me a minha mãe das meras horas ao telefone com a Sofia! Se tivesse horário de tarde é que ela ia ver! Corria tudo o que era programa! Desde o Sic 10 Horas à Oprah (sim, chamadas internacionais)! Ninguém me parava, ui!
Mas os velhinhos queridos também têm o seu quê de má-língua, que eu bem as oiço criticar as personagens das novelas, e a conspirar maldades na eventualidade de se cruzarem com elas na rua. São ferozes, as senhoras!
Outra coisa que eu admiro é a perícia dos avôzinhos com o equilíbrio nas curvas atribuladas da viagem. A minha imagem de velhice inclui um esqueleto frágil prestes a desmoronar-se que nem um castelo de cartas. Mas eles não! Eles desafiam toda a morfologia humana, e gozam com a força centrifuga e com a inércia, e mantêm-se hirtos às maiores oscilações. Parece que eles e o autocarro são um todo coeso. E eu, com uma bifurcação voo para o colo de alguém desafiando apenas a lei da gravidade.
E tudo vai nesta amena cavaqueira, apreciando mais uma viagem metropolitana, com os seus colegas que tratam pelos nomes com um Sr. ou uma Dona antes, mas que de facto devem ter todos mais ou menos a mesma idade! Eu não me imagino a tratar os meus amigos por Dona Legos, ou Sr. Mikie, muito menos a trata-los por você e a dizer: “Dona Legos, importa-se de me passar a tira de bordado inglês, por favor?”
Subitamente, começa a cheirar a medo no ar! O ar do autocarro até pode cheirar a muita coisa, mas o cheiro a medo quando cheira, cheira muito mais do que os outros!
A silhueta esférica da Dona Ermelinda já se vislumbra ao longe na paragem, por detrás de uma névoa sinistra, fitando o autocarro como o seu olhar de lince. Velhinhos tremem mais que o normal, uma coisa assim entre a gelatina e um ataque de hipotermia, oiço outros engolirem em seco, e o Sr. Mateus inclusive engasga-se com o canino. Há burburinho na camioneta e um suspense sofucante. Toda a gente a conhece, é um autêntico ícone social! Quem dera à Cinha Jardim ter metade do reconhecimento que a Dona Ermelinda tem, das suas viagens da Carris!
Ela entra, já resmungando entre dentes com o tempo, e reclamando com o Serviço de Informação Meteorológica repetindo: “Eu sabia que não devia ligar àquelas coisas que dizem na televisão! As minhas dores das articulações é que sabem quando o tempo vai mudar, eu sabia!”. Estes pormenores levam-me a pensar que se calhar as capacidades paranormais tendem a surgir com a idade, tipo bênção, conforme a pessoa que se foi ao longo da vida, ou assim… Vou portar-me bem, para chegar a velha e ler a mente, e ganhar todos os torneios de Canastra!
A Dona Ermelinda, depois de maldizer do tempo a torto e a direito, como se não estivesse satisfeita, começa logo a disputar por um lugar sentada, com uma qualquer velhinha que seja menos velha que ela! Às vezes mete-se com umas que são osso duro de roer (a juntar às próteses dentárias…) e quase desatam ali numa luta greco-romana, arrancando perucas e capachinhos, de bengala em riste, quais cabecilhas de guerra! Há dias em que eu, quando vejo mais que X rugas por metro quadrado, já nem me sento, não vá alguma senhora rogar-me pragas até ao fim dos meus dias, e eu ainda tenho uma esperança de vida confortável, e assim também evito ouvir mais um sermão sobre juventude perdida, que eles tanto gostam de declamar!
Depois de enxovalhar a Dona Alice, continua num monólogo revoltado, criticando os mais variados temas lá do alto dos seus 72 anos e do seu metro e cinquenta. Opina sobre tudo um pouco: política, economia, juventude… Enfim! Uma lista colossal de chatices! Sim, porque a conclusão final, é que é tudo uma chatice, e no seu tempo, era tudo muito mais bonito, as pessoas eram boas e nascia dinheiro das árvores! E, de repente, começa a interagir com os outros velhinhos, cada um opinando à sua maneira, cada um por seu caminho, e cria-se ali um debate aceso de significativo valor cultural! Referendos, discussões, perdigotos! O sossego daquela viagem morre afogado!
Têm as crenças vincadas nas rugas, já não há forma de as demover! Gera-se ali um Revolução Civil, o autocarro leva nele a Revolta do Cravos, na voz dos passageiros. A Dona Ermelinda é uma das Capitãs de Abril, e o motorista, coitado, é o refém.
Mas no fim de todo aquele fogo cerrado de opiniões distintas, acabam sempre todos por chegar a consenso, a um ideal comum, de que antigamente é que era, e agora tudo está mau, e a culpa é do sistema! Todos ficam amigos no fim, e a Dona Ermelinda e a Dona Alice já partilham fotografias da carteira. Aposto que grande parte das ideias que constituem o senso comum, nascem ali, nos bancos de trás do 27, com parteiras à moda antiga!
E assim vai decorrendo a viagem, que ao longo do tempo vai perdendo intervenientes, descarregados e salpicados, uns umas paragens antes, outros mais à frente…enfim, no devido lugar, quando é chegada a sua hora.
Mas confesso que a viagem no fim, quando já só restam mais uns sem destino como eu, perde toda a piada e fica muito mais incompleta.
Eu admiro-os. De que forma forem, com os mais variados feitos, admiro-os! Quer seja pelas suas personalidades vincadas com opiniões de ferro, quer pela enorme confiança que depositam em todos, partilhando as suas histórias de vidas reais com desconhecidos de uma forma genuína, porque a palavra não faz mal e a conversa cada vez faz mais falta. Quer por defenderem as suas ideias sem medo - porque quem enfrenta a morte mais de perto, não teme mais nada - , ou quer pelo simples facto de que a vida já passou quase toda por eles (ou eles já passaram quase todos pela vida) e guardam neles mais de 70 anos de imagens e respirações, que eu espero um dia vir a guardar. Ou seja, admiro-os porque existem, porque fazem falta, e porque me mostram o meu futuro e o de todos sem pedir nada em troca, apenas um sorriso, uma mão de ajuda para levantar, ou um lugar sentado no autocarro. São uma peça do puzzle comunitário, que é imprescindível como todas as outras para o acabar. Afinal, sem um fim, para que serviria começar?
Bem, é aqui que eu fico, Sr. Motorista! Boa tarde, e até amanhã!
Venho aqui desmistificar, para todos os leitores abastados, a ideia lendária de que andar de autocarro é um hábito sujo, degradante e sem qualquer proveito à excepção do contacto corporal que eu tanto gosto, sim?!
Tudo isso são mentiras! Tudo isso são calúnias! Tudo isso são blasfémias! Resolvi desprender-me de todos os meus preconceitos e estereótipos e descobri que… andar de autocarro pode ser um acto extremamente cultural! Diria erudito mesmo! Senão vejamos:
Num dia fotocopiado de muitos outros, sem nada de novo até à altura a não ser a mensagem de informação ao cliente da Yorn, que eu tanto gosto de receber, apanho o meu 27 e é aí que tudo muda! É a Boa Nova Rodoviária! De rua em praceta, começam a entrar os deputados da assembleia ambulante da 3ª idade. Têm rugas, cabelos brancos ou no hair at all, uns com olhos queridos por trás das lentes garrafais, outros com expressões ameaçadoras e zangadas com a vida ou com a morte que ainda está para chegar (ainda não consegui perceber muito bem), capazes de comer o mundo com as suas próteses dentárias reluzentes.
O clima começa a entrar em ebulição, pego nos meus Malteesers, acomodo-me na minha cadeira da primeira fila, autografada por Anas que amam Joões, and Show Time!
O motorista vai colhendo os passageiros, e os velhinhos, à medida que entram vão-se cumprimentando uns aos outros – os que se conhecem, os que não se conhecem, os que fingem que se conhecem e fazem autênticos malabarismos e ginásticas lexicais e sintácticas para evitar ter de se dirigir à pessoa pelo nome – enfim! Todos são amigos, e todos sabem de todos! Parecem ceitas organizadas, circulação interna de informação, base de dados completa! Às vezes chego mesmo a pensar que até devem existir Clubes de Associados da Carris, com encontros semanais e torneios de Canastra! Penso que alguns devem ser também amigos de Grupos Turísticos da viagem diária com partida em Santa Apolónia Às 17.00h. São reformados, têm tempo livre e solidão, um passe Lisboa Viva, e aproveitam (e muito bem) para conhecer a cidade. Existe melhor forma de conhecer Lisboa que no conforto de um Volvo com motorista, com ambientador humano de catinga do bosque e ar condicionado das respirações engripadas dos passageiros? Aposto que não!
Essas jornadas turísticas explicariam o facto de todos os velhinhos saberem os nomes de todas as ruas num raio de 15 Km e respectivos códigos postais, que nem um GPS orgânico topo de gama! Já eu, nem sei onde fica a Almirante Reis.
Acho especial piada às conversas corriqueiras das senhoras. Cumprimentam-se formalmente (é raro o contacto físico), e em vez do comum “Está boazinha?”, NÃO! Sai antes um benevolente, piedoso e mártir “Está melhorzinha?”… Mas é genérico! Podem até conhecer-se apenas da carreira anterior, podem nem saber nada de nada da pessoa, mas partem sempre do pressuposto que por detrás daquela simpatia toda estará algures escondida uma qualquer patologia maldosa, esfregando as mãos de crueldade, por mais que a pessoa venda saúde!
Mas também, frequentemente respondem à pergunta confirmando todas as dúvidas, disparando um rol imenso de doenças e dores, quais sofredoras pagando pelos seus pecados de uma vida! E pronto, desatam ali numa desgarrada de maleitas, competindo pelo lugar de moribundo como se de um leilão se tratasse. É o “quem dá mais” da Epidemiologia!
Seguidamente, perguntam pela família, o que inclui gatos, periquitos e todo o tipo de animais de companhia. Fazem outra competição, mas agora de fotografias dos filhos, netos, bisnetos e toda a linhagem descendente, que recheiam as suas carteiras de pele rechonchudas. Basta analisar-lhes o olhar babado e reconfortado de quem tem a certeza que trouxe algo de bom ao mundo, e isso basta-lhes a eles, e é razão mais que suficiente para viverem os últimos anos da sua vida, por mais difíceis que sejam. Contam histórias, o casamento dos netos, as traquinices de outros, e vivem essas memórias como se lhes trouxessem um bocadinho de juventude emprestada. Confiam as histórias e as vidas a pessoas que conhecem ali do banco da frente do autocarro, como se fossem amigos de longa data, quiçá da sua infância muito longínqua.
Trocam umas quantas ideias e uns quantos comentários sobre os programas matinais da televisão, sobre os dinheiros que gastam a tentar ligar para o Goucha no Você na TV. E acusa-me a minha mãe das meras horas ao telefone com a Sofia! Se tivesse horário de tarde é que ela ia ver! Corria tudo o que era programa! Desde o Sic 10 Horas à Oprah (sim, chamadas internacionais)! Ninguém me parava, ui!
Mas os velhinhos queridos também têm o seu quê de má-língua, que eu bem as oiço criticar as personagens das novelas, e a conspirar maldades na eventualidade de se cruzarem com elas na rua. São ferozes, as senhoras!
Outra coisa que eu admiro é a perícia dos avôzinhos com o equilíbrio nas curvas atribuladas da viagem. A minha imagem de velhice inclui um esqueleto frágil prestes a desmoronar-se que nem um castelo de cartas. Mas eles não! Eles desafiam toda a morfologia humana, e gozam com a força centrifuga e com a inércia, e mantêm-se hirtos às maiores oscilações. Parece que eles e o autocarro são um todo coeso. E eu, com uma bifurcação voo para o colo de alguém desafiando apenas a lei da gravidade.
E tudo vai nesta amena cavaqueira, apreciando mais uma viagem metropolitana, com os seus colegas que tratam pelos nomes com um Sr. ou uma Dona antes, mas que de facto devem ter todos mais ou menos a mesma idade! Eu não me imagino a tratar os meus amigos por Dona Legos, ou Sr. Mikie, muito menos a trata-los por você e a dizer: “Dona Legos, importa-se de me passar a tira de bordado inglês, por favor?”
Subitamente, começa a cheirar a medo no ar! O ar do autocarro até pode cheirar a muita coisa, mas o cheiro a medo quando cheira, cheira muito mais do que os outros!
A silhueta esférica da Dona Ermelinda já se vislumbra ao longe na paragem, por detrás de uma névoa sinistra, fitando o autocarro como o seu olhar de lince. Velhinhos tremem mais que o normal, uma coisa assim entre a gelatina e um ataque de hipotermia, oiço outros engolirem em seco, e o Sr. Mateus inclusive engasga-se com o canino. Há burburinho na camioneta e um suspense sofucante. Toda a gente a conhece, é um autêntico ícone social! Quem dera à Cinha Jardim ter metade do reconhecimento que a Dona Ermelinda tem, das suas viagens da Carris!
Ela entra, já resmungando entre dentes com o tempo, e reclamando com o Serviço de Informação Meteorológica repetindo: “Eu sabia que não devia ligar àquelas coisas que dizem na televisão! As minhas dores das articulações é que sabem quando o tempo vai mudar, eu sabia!”. Estes pormenores levam-me a pensar que se calhar as capacidades paranormais tendem a surgir com a idade, tipo bênção, conforme a pessoa que se foi ao longo da vida, ou assim… Vou portar-me bem, para chegar a velha e ler a mente, e ganhar todos os torneios de Canastra!
A Dona Ermelinda, depois de maldizer do tempo a torto e a direito, como se não estivesse satisfeita, começa logo a disputar por um lugar sentada, com uma qualquer velhinha que seja menos velha que ela! Às vezes mete-se com umas que são osso duro de roer (a juntar às próteses dentárias…) e quase desatam ali numa luta greco-romana, arrancando perucas e capachinhos, de bengala em riste, quais cabecilhas de guerra! Há dias em que eu, quando vejo mais que X rugas por metro quadrado, já nem me sento, não vá alguma senhora rogar-me pragas até ao fim dos meus dias, e eu ainda tenho uma esperança de vida confortável, e assim também evito ouvir mais um sermão sobre juventude perdida, que eles tanto gostam de declamar!
Depois de enxovalhar a Dona Alice, continua num monólogo revoltado, criticando os mais variados temas lá do alto dos seus 72 anos e do seu metro e cinquenta. Opina sobre tudo um pouco: política, economia, juventude… Enfim! Uma lista colossal de chatices! Sim, porque a conclusão final, é que é tudo uma chatice, e no seu tempo, era tudo muito mais bonito, as pessoas eram boas e nascia dinheiro das árvores! E, de repente, começa a interagir com os outros velhinhos, cada um opinando à sua maneira, cada um por seu caminho, e cria-se ali um debate aceso de significativo valor cultural! Referendos, discussões, perdigotos! O sossego daquela viagem morre afogado!
Têm as crenças vincadas nas rugas, já não há forma de as demover! Gera-se ali um Revolução Civil, o autocarro leva nele a Revolta do Cravos, na voz dos passageiros. A Dona Ermelinda é uma das Capitãs de Abril, e o motorista, coitado, é o refém.
Mas no fim de todo aquele fogo cerrado de opiniões distintas, acabam sempre todos por chegar a consenso, a um ideal comum, de que antigamente é que era, e agora tudo está mau, e a culpa é do sistema! Todos ficam amigos no fim, e a Dona Ermelinda e a Dona Alice já partilham fotografias da carteira. Aposto que grande parte das ideias que constituem o senso comum, nascem ali, nos bancos de trás do 27, com parteiras à moda antiga!
E assim vai decorrendo a viagem, que ao longo do tempo vai perdendo intervenientes, descarregados e salpicados, uns umas paragens antes, outros mais à frente…enfim, no devido lugar, quando é chegada a sua hora.
Mas confesso que a viagem no fim, quando já só restam mais uns sem destino como eu, perde toda a piada e fica muito mais incompleta.
Eu admiro-os. De que forma forem, com os mais variados feitos, admiro-os! Quer seja pelas suas personalidades vincadas com opiniões de ferro, quer pela enorme confiança que depositam em todos, partilhando as suas histórias de vidas reais com desconhecidos de uma forma genuína, porque a palavra não faz mal e a conversa cada vez faz mais falta. Quer por defenderem as suas ideias sem medo - porque quem enfrenta a morte mais de perto, não teme mais nada - , ou quer pelo simples facto de que a vida já passou quase toda por eles (ou eles já passaram quase todos pela vida) e guardam neles mais de 70 anos de imagens e respirações, que eu espero um dia vir a guardar. Ou seja, admiro-os porque existem, porque fazem falta, e porque me mostram o meu futuro e o de todos sem pedir nada em troca, apenas um sorriso, uma mão de ajuda para levantar, ou um lugar sentado no autocarro. São uma peça do puzzle comunitário, que é imprescindível como todas as outras para o acabar. Afinal, sem um fim, para que serviria começar?
Bem, é aqui que eu fico, Sr. Motorista! Boa tarde, e até amanhã!
22/10/2006
Outubro.Outono.Cinzento.
É 22 de Outubro. É Outono. É cinzento. São 5 p.m. dum domingo qualquer como todos os outros, iguais e repetidos no metrónomo dos meses e dos anos, marcando o fim de uma semana ou o início de outra, como quiseres! Varia conforme o teu estado de espírito e a fome que tens ou não de tempo. O Sócrates por exemplo deve vê-los como o fim de uma semana, pode ser que lhe dê a ilusão optimista que já cumpriu mais uma semana de governo exemplar cheia de exemplos em branco, e isso lhe alimente o seu espírito ambicioso por um Portugal melhor e uma conta bancária Excelente. Já eu por exemplo, dou comigo às vezes a consumir domingos com um apetite voraz, quando alguma data aliciante espera por mim sentada no quadradinho do seu calendário. E volta e meia, à conta desta minha gula cronológica, engasgo-me nos domingos e nas quartas-feiras, tropeço nas terças e engulo as quintas sem mastigar, trocando a digestão toda e a agenda também. Basicamente a minha falta de organização explica-se pelo sabor do tempo e a minha enorme gulodice.
Este domingo de hoje acordou zangado e de mal com o mundo. Está com má cara! E com mau tempo também! Não há luz! Parece que se fechou num quarto escuro a chorar sobre as suas mágoas! Os meus sentimentos… Nada que uma caixa de chocolates e uma sessão intensiva de Dr. Phill não resolvam!
Sento-me na cadeira em frente à secretária, em posições que desafiam a morfologia humana e surpreendem-me com a minha flexibilidade desconhecida, e vou olhando pela janela a ver se chove. Literalmente. E chove! O domingo está com um ar ameaçador hoje! Ventos ciclónicos, árvores empurradas umas contra as outras, gotas de água suicidas, folhas pára-quedistas, carros que abanam como se as joaninhas da Peugeot dançassem samba lá dentro, dilúvios de proporções celestiais, trovoadas ensurdecedoras que até o nosso coração e pulmões ouvem, como se a terra estivesse com fome ou como se os deuses se irritassem lá em cima e se insultassem divinamente, relâmpagos hipnotizantes como se o céu nos tivesse a tirar fotografias, e um filtro cinzento que torna tudo mais escuro.
Fico parada e estática a olhar o temporal, como se estivesse a ver o Orlando Bloom à minha frente. Nunca soube explicar muito bem a sensação que tenho quando olho a chuva lá fora. É um misto de segurança e desconforto, de bonito e feio, de bom e de mau. É como um vício. Prende-me de uma forma instintiva. Não conheço nenhum nome para essa sensação. Se me perguntarem o que sinto ao ver uma tempestade, respondo que sinto chuva. É capaz de servir a definição. Gosto do cheiro a terra molhada e do cheiro a frio, gosto de a ver cair lá fora, mas apenas porque estou cá dentro e isso me dá uma sensação estúpida de segurança, como se a chuva magoasse. Isso faz-me sentir uma medricas patética.
E fico assim, a ver o domingo passar, os chapéus de chuva a virarem-se do avesso, pondo em causa a sua utilidade, as manadas oportunistas de “qué-frô” sedentos de negócio fácil e conveniente com molhos não de rosas mas de guarda-chuvas a dois euros, as calças molhadas até aos joelhos, os cabelos das senhoras feitos ninho de rato. Fico assim sentada a ver Outubro, a ver Outono, a ver cinzento.
Este domingo de hoje acordou zangado e de mal com o mundo. Está com má cara! E com mau tempo também! Não há luz! Parece que se fechou num quarto escuro a chorar sobre as suas mágoas! Os meus sentimentos… Nada que uma caixa de chocolates e uma sessão intensiva de Dr. Phill não resolvam!
Sento-me na cadeira em frente à secretária, em posições que desafiam a morfologia humana e surpreendem-me com a minha flexibilidade desconhecida, e vou olhando pela janela a ver se chove. Literalmente. E chove! O domingo está com um ar ameaçador hoje! Ventos ciclónicos, árvores empurradas umas contra as outras, gotas de água suicidas, folhas pára-quedistas, carros que abanam como se as joaninhas da Peugeot dançassem samba lá dentro, dilúvios de proporções celestiais, trovoadas ensurdecedoras que até o nosso coração e pulmões ouvem, como se a terra estivesse com fome ou como se os deuses se irritassem lá em cima e se insultassem divinamente, relâmpagos hipnotizantes como se o céu nos tivesse a tirar fotografias, e um filtro cinzento que torna tudo mais escuro.
Fico parada e estática a olhar o temporal, como se estivesse a ver o Orlando Bloom à minha frente. Nunca soube explicar muito bem a sensação que tenho quando olho a chuva lá fora. É um misto de segurança e desconforto, de bonito e feio, de bom e de mau. É como um vício. Prende-me de uma forma instintiva. Não conheço nenhum nome para essa sensação. Se me perguntarem o que sinto ao ver uma tempestade, respondo que sinto chuva. É capaz de servir a definição. Gosto do cheiro a terra molhada e do cheiro a frio, gosto de a ver cair lá fora, mas apenas porque estou cá dentro e isso me dá uma sensação estúpida de segurança, como se a chuva magoasse. Isso faz-me sentir uma medricas patética.
E fico assim, a ver o domingo passar, os chapéus de chuva a virarem-se do avesso, pondo em causa a sua utilidade, as manadas oportunistas de “qué-frô” sedentos de negócio fácil e conveniente com molhos não de rosas mas de guarda-chuvas a dois euros, as calças molhadas até aos joelhos, os cabelos das senhoras feitos ninho de rato. Fico assim sentada a ver Outubro, a ver Outono, a ver cinzento.
07/10/2006
O que queres ser quando fores grande?
O que é que gostavas de ser quando fores grande?
Aviador e tu?
Não sei.
Engraçado como os putos, pirralhos de palmo e meio, às vezes conseguem ser mais decididos e mais seguros de si mesmos do que nós, projectos de adultos, formados em matemáticas, letras e tretas.
Engraçado como os putos, sem saberem nada, sabem sem querer o que são e o que gostam, o que querem e o que não querem, ter 2 namoradas com o consentimento de ambas, isto é de mestre! Já nós, pseudo-sábios com uma experiência de vida imensa, que nem um Dalai Lama ocidental, andamos à espera da ajuda do público para escolher o que está atrás da porta 1, 2 ou 3, porque não conseguimos decidir por nós próprios. E depois, volta e meia a plateia manda uma ao poste, e lá nos sai um vale no valor de 200€ em gomas e sortidos na Doçaria Santos & Santos. Aposto que os putos, acertavam à primeira e iam todos felizes para casa com os seus sonhos muito mais modestos do que os nossos.
Engraçado também, como para os putos, tudo se resume a uma simplicidade única e naturalmente óbvia, e não precisam de grandes filosofias para viverem o dia a dia com um sorriso na cara. Quais teorias da relatividade, quais conotações e sentidos dúbios. Para eles um sim é um sim, um não é um não. Para eles um não, não é um está-na-eminência-entre-um-sim-e-um-não-mas-em-caso-de-dúvida-negue-sempre.
Basicamente, os putos têm muito mais graça que nós. Graça e atitude, e arrisco-me a afirmar que essas duas razões estão praticamente em proporcionalidade inversa com a idade… quanto mais velhos, menos engraçados e mais parvos. Lindo… acho que só voltamos a recuperar quando ficamos idosos, sábios e experientes e inválidos, e quando a vida já passou por nós e nos deitou a língua de fora! Lanço-vos um desafio: tentem responder na mesma moeda nessa altura sem escorrer um fio de baba e sem ter problemas técnicos relativos à prótese dentária! Está a valer uma embalagem de Viagra!
À medida que crescemos vamos ficando mais pequenos… Paradoxal e controverso, dito assim de uma só vez até corro o risco de chocar os idealistas mais conservadores e os pais de família. Peço desculpa a pouca sensibilidade e este meu jeito salpicadamente rude, mas o meu lado de criança de temps en temps manifesta-se e digo coisas assim sem lógica alguma e completamente descabidas aos olhares maduros e adultos de quem tem medo da opinião alheia, como a minha irmã do papão. Eu digo que ficamos mais pequenos, porque a nossa essência cai na tentação de se aprisionar, não vá ela pisar a linha do socialmente aceitável, e que ninguém ouse importunar sua malvadeza!
Mas não me julguem uma marginal e deslocada, idealista e revoltada que critica o modelo social actual. É a realidade actual, a ervilha em que vivemos. Regemo-nos pelas referências que a sociedade nos dá, crescemos nos meios em que sociedade nos acolhe, aprendemos a ser aquilo que a sociedade é. É um instinto animal de assimilação. Eu por exemplo nunca vi elefantes pendurados em árvores nem koalas tocarem o sino. Uns mais que outros absorvemos os padrões e adaptamo-nos. Não que isso seja totalmente mau, mas cabe-nos a nós interpretar e filtrar segundo a nossa maneira de ser aquilo que recebemos dos outros, e decidir o que ser ou não, mas sem que isso vá contra os nossos princípios básicos. Temos de ser um bocadinho aquilo que somos, a massa do nosso bolo mármore, e não o que gostaríamos que os outros vissem em nós. Eu por exemplo adorava ser vegetariana. O problema é que eu odeio vegetais…
Aviador e tu?
Não sei.
Engraçado como os putos, pirralhos de palmo e meio, às vezes conseguem ser mais decididos e mais seguros de si mesmos do que nós, projectos de adultos, formados em matemáticas, letras e tretas.
Engraçado como os putos, sem saberem nada, sabem sem querer o que são e o que gostam, o que querem e o que não querem, ter 2 namoradas com o consentimento de ambas, isto é de mestre! Já nós, pseudo-sábios com uma experiência de vida imensa, que nem um Dalai Lama ocidental, andamos à espera da ajuda do público para escolher o que está atrás da porta 1, 2 ou 3, porque não conseguimos decidir por nós próprios. E depois, volta e meia a plateia manda uma ao poste, e lá nos sai um vale no valor de 200€ em gomas e sortidos na Doçaria Santos & Santos. Aposto que os putos, acertavam à primeira e iam todos felizes para casa com os seus sonhos muito mais modestos do que os nossos.
Engraçado também, como para os putos, tudo se resume a uma simplicidade única e naturalmente óbvia, e não precisam de grandes filosofias para viverem o dia a dia com um sorriso na cara. Quais teorias da relatividade, quais conotações e sentidos dúbios. Para eles um sim é um sim, um não é um não. Para eles um não, não é um está-na-eminência-entre-um-sim-e-um-não-mas-em-caso-de-dúvida-negue-sempre.
Basicamente, os putos têm muito mais graça que nós. Graça e atitude, e arrisco-me a afirmar que essas duas razões estão praticamente em proporcionalidade inversa com a idade… quanto mais velhos, menos engraçados e mais parvos. Lindo… acho que só voltamos a recuperar quando ficamos idosos, sábios e experientes e inválidos, e quando a vida já passou por nós e nos deitou a língua de fora! Lanço-vos um desafio: tentem responder na mesma moeda nessa altura sem escorrer um fio de baba e sem ter problemas técnicos relativos à prótese dentária! Está a valer uma embalagem de Viagra!
À medida que crescemos vamos ficando mais pequenos… Paradoxal e controverso, dito assim de uma só vez até corro o risco de chocar os idealistas mais conservadores e os pais de família. Peço desculpa a pouca sensibilidade e este meu jeito salpicadamente rude, mas o meu lado de criança de temps en temps manifesta-se e digo coisas assim sem lógica alguma e completamente descabidas aos olhares maduros e adultos de quem tem medo da opinião alheia, como a minha irmã do papão. Eu digo que ficamos mais pequenos, porque a nossa essência cai na tentação de se aprisionar, não vá ela pisar a linha do socialmente aceitável, e que ninguém ouse importunar sua malvadeza!
Mas não me julguem uma marginal e deslocada, idealista e revoltada que critica o modelo social actual. É a realidade actual, a ervilha em que vivemos. Regemo-nos pelas referências que a sociedade nos dá, crescemos nos meios em que sociedade nos acolhe, aprendemos a ser aquilo que a sociedade é. É um instinto animal de assimilação. Eu por exemplo nunca vi elefantes pendurados em árvores nem koalas tocarem o sino. Uns mais que outros absorvemos os padrões e adaptamo-nos. Não que isso seja totalmente mau, mas cabe-nos a nós interpretar e filtrar segundo a nossa maneira de ser aquilo que recebemos dos outros, e decidir o que ser ou não, mas sem que isso vá contra os nossos princípios básicos. Temos de ser um bocadinho aquilo que somos, a massa do nosso bolo mármore, e não o que gostaríamos que os outros vissem em nós. Eu por exemplo adorava ser vegetariana. O problema é que eu odeio vegetais…
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