Há aí por esse mundo quem tenha carros topo de gama. Há quem tenha mansões modestas aonde cabia Lisboa inteira. Há também quem tenha roupa interior ou lingerie que leiloadas serviam para alimentar vinte e duas aldeias em África. Há quem tenha músculos de fazer invejar o Van Dame ou o Stalone. Há quem tenha um par de mamas de três quilos e seiscentas cada uma. Eu tenho uma avó. Uma avó muito à frente que põe qualquer um knock out. Se a minha avó trabalhasse punha qualquer um a viver do fundo de desemprego. Por onde ela passa, deixa um rasto de cinza e destruição intelectual.
Já há muito que estou para escrever acerca deste pequeno tesouro literário que é a minha avó. Então decidi, finalmente, fazer um pequeno estudo, um pequeno apontamento sobre esta jóia da Língua Portuguesa. E decidi igualmente botar aqui esta posta ortográfica de conteúdo semântico e gramatical relevante, para que qualquer estudante ou aficionado das Línguas tenha aqui uma fonte preciosa de estudo.
Todo este esplendor literário prolifera quando se junta a minha avó e um meio de comunicação, seja ele qual for. Mas vou-me restringir apenas ao telefone, que de todos é o que constitui a melhor ferramenta de estudo para este fenómeno da língua portuguesa.
O que se passa é que a minha avó quando levanta o auscultador e digita os algarismos do número telefónico de algum parente ou amigo próximo, dá inicio sem saber a um discurso digno de ser escrito e nomeado para o Prémio Nobel da Literatura. Basicamente a minha avó fala muito. Se acham que a Teresa Guilherme fala muito, desenganem-se, a minha avó fala mais. Posso inclusive afirmar que a minha avó quase que nasceu com um dom. A minha avó tem, de facto, uma aptidão transcendente para a comunicação.
Numa simples e corriqueira conversa telefónica quotidiana, a minha avó consegue incluir os mais diversos elementos gramaticais que se possa imaginar, num tempo recorde de 7 minutos, ou coisa que o valha. Qual Saramago, qual Fernando Pessoa, qual Virgílio Ferreira… a minha avó tem muito mais paleio que todos eles juntos em desgarrada. Literalmente. Se lhe déssemos liberdade total de expressão, o discurso dela tenderia para o infinito, vão por mim.
Vou portanto debruçar-me apenas sobre os aspectos mais presentes e mais marcantes dos imensos discursos da minha avó.
Quando atendemos o telefone, após os rotineiros cumprimentos e perguntas da praxe, a minha avó atira logo com uma descrição pormenorizada da sua situação actual. Descrições e enumerações são o seu forte. Dois recursos estilísticos logo para iniciar a refeição, tipo aperitivo. Geralmente começa a frase com: “Estava aqui a ver televisão…” ou algo dessa ordem. Quase como se nos informasse do estado da bolsa, ela informa-nos do seu estado de espírito. De seguida inclui logo a informação completa do estado do tempo para o dia, seguido da frase: “ (…) mas com o meu ar condicionado, é outra coisa!”. A minha avó desde que tem aquele ar condicionado que não é a mesma. Parece uma mulher muito mais realizada, muito mais confortável na vida e na sala de estar.
Depois da informação meteorológica segue-se a ementa. Faz então uma nova descrição e enumeração detalhada do seu menu, forma e local de confecção, e uma enumeração de todas as percepções sensoriais, como sabor, cheiro e aspecto.
Dada a informação gastronómica, segue-se os acontecimentos do dia, como as conversas bairristas com vizinhos, amigos ou parentes. É aí que entra o discurso directo. Ao contrário de resumir o diálogo e restringi-lo ao conteúdo fulcral, não. A minha avó cita todas as passagens. Assim como na Bíblia, tipo “Evangelho segundo Judas…”, os diálogos pela boca da minha avó seriam “Postulados de bica na mão segundo Clotilde”. E é nesta altura que se inicia um fogo cerrado de “e eu disse, e ele disse, e eu disse, e ele disse” até que não restem mais palavras por dizer.
Outra característica muito presente no discurso da minha avó é sem dúvida a introspecção. Quase num estilo lírico, a minha avó expõe todas as suas introspecções por palavras, geralmente introduzidas pela frase: “e eu pensei assim: (…)”.
Finalmente devo fazer referência ainda à relatividade do discurso. No discurso da minha avó existe muita subjectividade. Tudo é relativo. Uma árvore pode não ser uma árvore. Um pássaro pode não ser um pássaro. Um chinelo pode não ser um chinelo. E tudo isto porque a minha avó tem a arte de substituir harmoniosamente grande parte dos substantivos por uma palavra universal, multisignificativa e com um rol imenso de conotações: a palavra “coisa” ou a sua derivada masculina, “coiso”. E assim tudo ganha um significado próprio, significado esse escondido apenas no subconsciente da autora, neste caso, a minha avó. Cabe-nos a nós, simples ouvintes, decifrar todo o conteúdo subjacente à conversa, o que a torna consideravelmente mais interactiva!
Portanto como vêem, o conteúdo literário destas conversas é imenso, uma autêntica relíquia cultural.
Deixo agora um pequeno excerto do que são as conversas telefónicas com a avó Monroe, para vosso deleito e apreço.
Avó liga-me, eu atendo:
- Estou?
- Olá querida, tudo bem contigo?
- Sim e contigo?
- Também! Estava aqui sentada na sala a ver aquela novela do coiso… ai aquela dos irmãos, sabes que está quase a acabar?
- Sim, sei…
- Por acaso é muito gira, ela agora vai casar, estava aqui entretida a ver, enquanto vou espreitando a outra da 3.
- Pois…
- Bem hoje esteve um calor, uma coisa horrível, que eu saí à tarde para ir ao Big Ben tomar um café, e quando chego a casa pensei assim: “Bem está tanto calor que se calhar é melhor ligar o ar condicionado”, e agora está tão fresquinho, vinte e um graus, sabe mesmo bem!
- Sim, pois é…
- Sabes que dão mais calor para amanhã ainda! O que vale é que eu tenho o meu ar condicionado.
- Pois é, avó…
- Olha quando fui ao Big Ben, encontrei a coisa, e ela disse…
- A coisa quem?
- A coisa… a minha amiga! E então ela disse: “Olá, está boa? Há tanto tempo!” e eu disse: “é verdade, então e os meninos?” e ela disse: “Olhe um vai-se casar agora” e eu disse “Ah, veja só, já estão tão grandes…” – E segue-se um rol imenso de “e eu disse, e ela disse, e eu disse, e ela disse…”
- Hum, hum…
- Bem, depois fiz uma batatinha cozida com peixinho grelhado que já não fazia há imenso tempo… olha tenrinho, tenrinho, tenrinho! Sabia tão bem… Consolei-me!
- Pois, que bom… Olha vou passar à mãe está bem?
- Está bem querida, passa lá. Beijinhos!
- Beijinhos, avó!
E a saga recomeça…
Dois dedos de conversa? Nem as minhas duas mãos chegam sequer! Mas não faz mal, felizmente tenho as dela para ajudar a contar!
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3 comentários:
wooowww...lool!!realmente acho que nao é acertado chamar-lhe 2 dedos de conversa!
a minha avo e parecida, e ainda tem outro dom, consegue sempre ligar a hora do jantar. Pois será obvio dizer que depois quando vamos comer, a comida ja nao esta propriamente quentinha! Eu acho que deve haver reunioes semanais das avozinhas para discutir os recursos verbais e conversas a ter com os demais familiares. que achas?
akela*
Avós! Olha que bom tema! Infelizmente a mnha vóvó ja nao ta por ca pa me entreter com as suas conversas, mas inda me lembor dos tempos que ia para o algarve para a casa dela e fazíamos grandes almoçaradas em família. As avós são aquelas pessoas que gostam de cozinhar para a família, gostam de ter a família toda junta, naqueles almoços infindáveis que duram pela tarde dentro. A mnha avó foi uma grande avó, foi tudo aquilo que uma avó deve ser, apesar de ter partido quando eu tinha 10 anos daquilo que me lembro tava sempre lá para mim e observava com atençao tudo o que eu fazia. Os meus avós nessa altura moravam no algarve e eu e os meus pais de vez em quando passavamos lá uns dias, tínhamos um pastor alemão muito inteligente que, segundo consta das conversas do meu pai, quando eu era pequenino, rapazola de berço entenda-se, o cão costumava andar ali à vlta a cheirar me, como que a se interrogar sobre quem seria aquela amostra de ser humano que ali se lhe deparava, o meu pai ficava um pouco apreensivo mas o caozito dava uma ou duas voltas ao berço e deitava se aos pés deste como que dizendo: " Aqui ninguem mexe!", a minha vó é que o ensinou e quando eu nasci deu lhe uma ensaboadela de regras para que quando eu lá fosse ele me tratar bem. Por isso a mnha avo foi sempre como que uma protectora, muito alegre e inteligente, que contagiava o espirito dos outros. Pena tenho eu que hoje em dia ela nao esteja por ca para me aconselhar nalgumas decisoes que tenho que tomar ou em determinadas situaçoes da mnha vida.. Saudades da mnha avó, mas fica sempre aqui na mnha memoria pela pessoa que foi.
isto tudo k esta por aqui escrito é verídico, e tambem verdade. pois a "vovó" aqui mencionada é a minha tia-avó. enquanto escrevo isto estou no estadio do sporting a ver a partida futebolística:sporting-inter milan, e deve dizer k os post da minha prima "ma-velha" me estao a interessar mais. bem aqui me despeço com 1 abraço e meio e beijos para a minha prima "Monroe"...
De: Chico Ferreira
(que seca de jogo de futebol, camandro...)
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